Improbidade e acordos de leniência: resolvendo conflitos normativos

Por Ana Paula de Barcellos

A partir da edição das Leis 12.846/2013 e 12.850/2013, acordos de leniência no âmbito administrativo e acordos de colaboração premiada na esfera penal passaram a fazer parte da rotina do país. Ao ingressar no mundo jurídico, porém, essa nova legislação encontrou vigente a Lei de Improbidade (Lei 8.429/1992), que poderá incidir sobre os mesmos fatos. Embora a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) registre que sua incidência não afasta a aplicação das sanções e procedimentos previstos na Lei de Improbidade, essa previsão genérica não parece capaz de superar um conflito direto entre as novas normas e a antiga: o artigo 17, parágrafo único, da Lei de Improbidade, veda transação, acordo ou conciliação no âmbito das ações de improbidade.

A incongruência é evidente: acordos de leniência e de colaboração premiada podem ser celebrados, mas, acaso ainda vigente o art. 17, parágrafo único, isso não impediria que ações de improbidade sejam ajuizadas por conta dos mesmos fatos, gerando condenações variadas. E o risco é potencializado pela circunstância de o STF ter decidido (RE 852.475) que ações de improbidade, postulando indenização por danos causados ao erário, são imprescritíveis.

Em 2015, o Presidente editou a MP 703 revogando o artigo 17, parágrafo único, da Lei de Improbidade, mas ela não foi convertida em lei pelo Congresso e perdeu eficácia. Em 2017, o CNMP editou a Resolução 179/2017, entendendo que o referido artigo foi revogado pela legislação de 2013 e que os membros do Ministério Público podem negociar acordos também em ações de improbidade. Em julho de 2018, foi ajuizada a ADI 5980 pedindo que o STF declare a inconstitucionalidade do artigo, que aguarda julgamento. O argumento é que a vedação a acordos viola o princípio da eficiência já que impõe à Administração Pública o uso da via judicial – mais lento e custoso – como único meio de levar a cabo seus esforços anticorrupção.

Na realidade, parece incompatível com o sistema constitucional que a Administração Pública e/ou o Ministério Público possam, de um lado, celebrar acordos de leniência e de colaboração premiada, respectivamente, e de outro, ajuizar ações de improbidade por conta dos mesmos fatos. Além das exigências de boa-fé e segurança jurídica impostas ao Poder Público, a Administração está vinculada pelo princípio da impessoalidade, isto é: quem se relaciona com o particular é o órgão ou entidade, e não as pessoas que os presentam individualmente. O Ministério Público, por seu turno, está vinculado pelo princípio constitucional da unidade: trata-se de uma instituição una da qual se exige uma ação coerente.

Sob outra perspectiva, parece consistente afirmar que a vedação contida no artigo 17, parágrafo único, da Lei de Improbidade tornou-se realmente incompatível com o sistema jurídico em vigor. Para além das duas leis referidas, que admitem transação em tema no mínimo tão grave quanto o da improbidade, a arbitragem passou a ser expressamente admitida no âmbito da Administração Pública (Lei 13.129/2015) para resolver conflitos envolvendo direitos patrimoniais disponíveis, e a mediação e a solução extrajudicial de conflitos passaram a ser estimuladas, inclusive no âmbito da Administração (Lei 13.140/2015). Ou seja: esse conjunto de opções legislativas superou o antigo paradigma que supunha que a decisão judicial estatal seria o único meio possível de solução de conflitos envolvendo o interesse público. Nos termos do sistema normativo em vigor, soluções negociadas podem ser melhores para o interesse público do que qualquer solução que, após anos de tramitação processual, venha a ser definida pelo Judiciário.

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