Ordens de remoção de conteúdo na internet e eficácia territorial: duas perspectivas distintas na jurisprudência

Por Jonas Coelho Marchezan e Juliana Maia

Uma ordem de remoção de conteúdo na internet proferida pelo Judiciário brasileiro pode afetar cidadãos de outros países do mundo e modificar o conteúdo que eles podem consumir online? A diferença nas respostas dos Tribunais a essa pergunta pode estar muito mais pautada na forma com que os julgadores entendem a internet, do que discordâncias quanto a interpretação da lei aplicável.

No artigo The Problem of Perspective in Internet Law1, Orin S. Kerr introduziu uma questão seminal nos debates sobre direito e internet: o intérprete, na aplicação do direito a fatos ocorridos na internet, sempre poderá (ou deverá) escolher entre dois conjuntos distintos de fatos – ou duas perspectivas distintas sobre a internet. O intérprete pode adotar: (i) a perspectiva da realidade virtual, modelando os fatos do seu problema no ponto de vista de um usuário da internet no “cyberespaço”, aplicando o direito por meio de analogias entre ações do usuário nesse mundo virtual e as ações equivalentes no mundo real; ou (ii) a perspectiva da realidade física, assumindo a forma com que o meio de comunicação “internet” realmente funciona (“behind the scenes”) e aplicando assim analogias entre o mundo real e as ações “nos bastidores” das conexões e protocolos lógicos que fazem a internet funcionar.

O artigo menciona vários problemas jurídicos que passam por essa distinção. Por exemplo: um mandado de busca e apreensão em um determinado endereço possibilitaria às autoridades acessar dados salvos em servidor externo – “na nuvem”? Sob a perspectiva da realidade virtual, a presença de um computador ou celular com acesso ao local de armazenamento externo tornaria plenamente possível o acesso pelas autoridades, em tese os arquivos em nuvem estão virtualmente presentes no endereço delimitado da busca – sob o ponto de vista do usuário, poucos cliques dariam acesso a dados armazenados (fisicamente) a quilômetros de distância. Sob a outra perspetiva, o acesso aos arquivos em nuvem deveria ser previsto de forma específica no mandado, e não poderia ser presumido. Isto é: antes mesmo de ponderar quanto aos institutos legais cabíveis, é necessário um exercício anterior, de adoção de uma perspectiva e reconhecimento da base fática do caso analisado.

Variações semelhantes de resultado a depender da perspectiva adotada podem ser vistas em casos envolvendo remoções de conteúdo. No Brasil2, a análise de casos julgados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a eficácia territorial de ordens de remoção demonstra que o debate tem claramente se pautado por escolhas distintas de perspectiva. Há alguns acórdãos – principalmente por parte da 1ª Câmara Cível – que adotam expressamente a perspectiva da realidade virtual e chegam a conclusão que a atribuição de efeitos extraterritoriais a uma ordem de remoção de conteúdo seria perfeitamente aceitável, pois “[n]a realidade virtual não pode o recorrente (…) invocar limites territoriais3. Por outro lado, no mesmo Tribunal nota-se a perspectiva da realidade física, criticando essa ampliação de efeitos das ordens de remoção para todo o “cyberespaço”. Como se vê em voto vencido de acórdão da 9ª Câmara Cível:

Importante frisar que o chamado cyberspace, ou ‘espaço virtual’, não existe como realidade ßsica. Não é um Estado soberano, mas apenas uma representação audiovisual criada e mantida por sistemas informáticos e programas de computador, presente em quase todos os países do mundo. Dessa forma, assim como não é possível a uma nação impor sua vontade fora de seus limites territoriais, mostra-se inviável estabelecer regras sobre o que se pode ou não ser divulgado da Internet por cidadãos de outros países”4.

O debate no Tribunal paulista tem outras camadas de complexidade5, mas os votos mencionados tornam claro que o problema de perspectiva está presente no embate e é etapa definitiva para conclusão dos julgadores. Com a adoção da perspectiva do usuário – em geral, daquele que está requerendo a remoção do conteúdo –, pouco faz diferença o local de acesso do conteúdo: o dano ocorreu e deve ser contido no cyberespaço. A adoção dessa perspectiva não leva em consideração a incidência de jurisdições distintas de Estados soberanos nesse mesmo “espaço”, que é levada em consideração pela perspectiva oposta. Caso adotada a perspectiva da realidade física, impõe-se o reconhecimento de que a internet é um meio de comunicação transnacional e, portanto, a remoção extraterritorial de conteúdo acarreta conflito entre jurisdições – assim, não seria possível impor a conclusão da justiça de um país automaticamente a outro.

O mesmo tipo de embate de perspectivas é visto em outros julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre o tema, ainda que de maneira menos expressa. Um acórdão da 5ª Câmara Cível, por exemplo, assume que a indisponibilização de determinado conteúdo em todo mundo seria possível mesmo sem “determinação de que a decisão judicial produza efeitos fora do território nacional”, uma vez que a ordem de remoção proferida no Brasil “[p]or óbvio (…) redundará na impossibilidade de acesso a partir de qualquer parte do mundo6. A conclusão, à primeira vista paradoxal, explica-se pela adoção da perspectiva da realidade virtual.

Em seu artigo, Orin S. Kerr não defende a adoção a priori de uma ou outra perspectiva, mas alerta sobre importância da escolha para o resultado da aplicação da lei e propõe que, em cada caso concreto, opte-se por adotar a perspectiva que seja mais fiel à lei e conserve o conteúdo e funcionamento da norma jurídica preexistente – ou, levando a proposta às últimas consequências: a adoção de uma ou outra perspectiva não pode fazer letra morta da lei aplicável.

Adotando o teste proposto para análise do tema específico da remoção extraterritorial de conteúdos, há uma série de fatores da legislação nacional que apontam para a adoção da perspectiva da realidade física – o que, por sua vez, teria como consequência a conclusão de que remoções de conteúdo, por regra, deveriam seguir os limites territoriais da jurisdição nacional. A opção pela perspectiva da realidade fática é mais fiel:

  1. às regras de limitação territorial de jurisdição e de eficácia de leis estrangeiras. O CPC estabelece como regra que a jurisdição brasileira é exercida “em todo o território nacional” (art. 13) e a LINDB, em complemento, estabelece as regras para que decisões estrangeiras surtam efeito para além dos seus limites normais (art. 15 e 17). A pertinência dessas previsões legais é reconhecida pelo STJ, que já reconheceu que esse dispositivos devem ser levados em consideração na análise de pretensões de remoção extraterritorial de conteúdo em ao menos duas oportunidades7.
  1. à forma de regulação e controle de direitos autorais e propriedade intelectual. As leis de direitos autorais e propriedade intelectual se orientam por paradigmas territoriais e de reciprocidade (LDA, art. 2º, parágrafo único; LPI, art. 3º e 4º). A esse respeito, em Google LLC

v. Equustek Solutions Inc. — um dos precedentes paradigmáticos sobre remoções extraterritoriais de conteúdo —, a Corte Distrital do Norte da Califórnia8 sustou os efeitos de ordem de remoção extraterritorial de conteúdo por infração à propriedade intelectual proferida pela Suprema Corte Canadense. A Corte Canadense argumentava pela perspectiva virtual da internet, registrando que “a internet não tem fronteiras — o seu habitat natural é global9, ao passo que a Corte norte-americana reconheceu a transnacionalidade da rede – a ordem Canadense (…) ameaça a liberdade de expressão na internet global”.

  1. à própria definição de internet trazida pelo Marco Civil da Internet, lei que também delimita a responsabilidade civil dos provedores nos casos de remoção de conteúdo. A lei explicitamente adota a definição da internet como meio de comunicação (art. 5º, I) de escala mundial (art. 2º, I), descrevendo seu funcionamento “behind the scenes”10. A Quarta Turma do STJ, também em decisão sobre a eficácia territorial de ordens de remoção de conteúdo, já tratou da rede de forma condizente com essas definições. O acórdão de relatoria do Ministro Raul Araújo alertou uma ordem que extrapola os limites do território brasileiro pode “inviabilizar o perfeito funcionamento da rede mundial de computadores e a garantia da liberdade de expressão e de informação no âmbito mundial11.
  1. ao conteúdo e termos da liberdade de expressão, que invariavelmente variam conforme fatores culturais e históricos de cada país. O direito ao esquecimento, por exemplo, é tido como incompativel com a Constituição Federal brasileira e, mesmo as jurisdições que o aplicam – como a da União Europeia – reconhecem expressamente que, em diversos Estados, o direito ao esquecimento “não existe ou é objeto de uma abordagem diferente”12. Sintomaticamente, esse reconhecimento se deu no caso Google LLC v. CNIL, em que o Tribunal de Justiça da União Europeia confirmou que o direito ao esquecimento somente é aplicável dentro dos limites da União Europeia – e que os provedores não estão obrigados a aplicá-lo de forma “global”.

Caso se assuma que remoções de conteúdo devem repercutir em todo o “cyberespaço”, as normas listadas perderiam parte ou todo seu sentido prático – o que também traria riscos à integridade e coerência do ordenamento jurídico, bem como à internet como conhecemos. A escolha de perspectiva não deve deixar de considerar as peculiaridades e dificuldades inerentes ao caráter global da internet. Pelo contrário, essa complexidade deve ser levada em conta no esforço de não desconsiderar normas de direito internacional e às próprias escolhas do legislador nacional.
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1 Kerr, Orin S., The Problem of Perspective in Internet Law. 91 Georgetown Law Journal 357 (2003)., Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=310020 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.310020.

2 Nos julgamentos estrangeiros com maior visibilidade sobre o tema, têm-se entendido pela impossibilidade da extensão global automática de remoções de conteúdo. A questão já foi tratada pelo Tribunal de Justiça Europeu (Google LLC vs. Commission nationale de l’informatique et des libertés (CNIL) que concluiu que ordens de remoção, a princípio, devem se limitar aos limites territoriais do espaço comunitário, eficácia tornada possível pela existência de legislação comum e mecanismos de cooperação Europeus. A mesma Corte tratou da mesma matéria de forma lateral em outro caso (Eva Glawischnig-Piesczek vs. Facebook Ireland Limited), remetendo ao Estados a possibilidade de tratar do tema desde que “tenham devidamente em conta” “as regras em vigor em nível internacional”.

3 TJSP, DJe 01 ago 2019, AI nº 2026147-68.2019.8.26.0000, Rel. Des. Cláudio Godoy.

4 TJSP, DJe 20 dez 2019, AI nº 2129648-38.2019.8.26.0000, Rel. sorteado Piva Rodrigues (declaração de voto vencido)

5 Há, por exemplo, acórdãos que entendem pela remoção de conteúdo com efeitos extraterritoriais alegando a aplicação do art. 11 do Marco Civil da Internet, que trata precipuamente do respeito à legislação brasileira em operações de tratamento de dados.

6 TJSP, DJe 01 jun 2022, AP nº 1055940-94.2018.8.26.0100, Desa. Rel. J.L. Mônaco da Silva.

7 STJ, DJe 07 set 2023, REsp nº 2063360/SP, Min. Raul Araújo (decisão monocrática); STJ, DJe 28 nov 2022, AREsp nº 1992350/SP, Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira (decisão monocrática).

8 Corte do Distrito Norte da Califórnia (Estados Unidos), Google LLC. v. Equustek Solutions Inc. (Caso n° 5:17-cv-04207-EJD), j. em 02 nov. 2017. Disponível em: https://casetext.com/case/google-llc-v-equustek-solutions-inc-1

9 Suprema Corte do Canadá, Google Inc. v. Equustek Solutions Inc. (Caso n° 2017 SCC 34), j. em 28 jun. 2017. Disponível em: https://scc-csc.lexum.com/scc-csc/scc-csc/en/item/16701/index.do

10 Lei nº 12.965/14. Art. 2º A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como: I – o reconhecimento da escala mundial da rede; Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se: I – internet: o sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes.

11 STJ, DJ 04 dez. 2019, AgInt no REsp 1.354.484/SP, Rel. Min. Raul Araújo.

12 Tribunal de Justiça da União Europeia, Google LLC v. National Commission on Informatics and Liberty (Caso n° C-507/17), j. em 24 set. 2019. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62017CJ0507

Ordens de remoção de conteúdo na internet e eficácia territorial: duas perspectivas distintas na jurisprudência