Sherlock Holmes e a LGPD – A atuação de detetive particular em face do art. 4° da Lei Geral de Proteção de Dados 

Por Luís Fernando Oliveira de Souza Costa e Eduarda Chacon 

A Lei Geral de Proteção de Dados, como o próprio nome já diz, versa sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoas físicas ou jurídicas e visa a proteger os direitos fundamentais de liberdade, privacidade e o livre desenvolvimento da pessoa natural, consoante o exposto em seu art. 1°. 

É válido notar, contudo, que o próprio texto da lei assevera em seu art. 4° que não são todas as operações de dados abrangidas pela Lei, dentre as quais aquelas relativas ao uso de dados para fins jornalísticos, ou por pessoas naturais para finalidades não-econômicas. Assim, para o presente texto, o foco de atenção será deslocado para a excepcionalidade prevista no inciso III, alínea a deste mesmo artigo, qual seja, a não aplicação da norma quando se está diante de: “atividades de investigação e repressão de infrações penais”. 

Veja-se que de pronto, é possível imaginar que atividades investigativas promovidas pela autoridade policial são absolutamente legais, como é possível depreender, inclusive, das normativas específicas que regem a matéria, como por exemplo, a Lei 12.830/13, no §2° do art. 2°, que dispõe como dever e poder do delegado durante o curso da investigação criminal realizar: “a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.”. 

Nem seria necessário adentrar na legislação específica para chegar à esta mesma conclusão, basta verificar o Código de Processo Penal, o qual determina, em seu art. 13-A e 13-B, prerrogativas de requisição de informação bastante amplas à Autoridade Policial. 

Porém, no caso do Sherlock Holmes seria diferente, isto porque, o Sherlock, personagem ficcional de Arthur Conan Doyle, é um detetive particular, portanto, as suas atividades devem ser regidas pela Lei que disciplina a profissão de detetive particular, sendo ela a lei 13.432/17. Nesta, é possível verificar em seu art. 2° a definição deste profissional:  

Considera-se detetive particular o profissional que, habitualmente, por conta própria ou na forma de sociedade civil ou empresarial, planeje e execute coleta de dados e informações de natureza não criminal, com conhecimento técnico e utilizando recursos e meios tecnológicos permitidos, visando ao esclarecimento de assuntos de interesse privado do contratante. 

Veja-se que, em uma leitura atenta do dispositivo, é possível perceber quase que imediatamente que o detetive particular não se enquadraria na excepcionalidade prevista pelo art. 4° da LGPD, uma vez que sua atuação está voltada para a coleta de dados e informações de natureza não criminal, certo? Assim seria se a referida lei não dispusesse em seu art. 5° que: “O detetive particular pode colaborar com investigação policial em curso, desde que expressamente autorizado pelo contratante.”  

Soma-se a isso a excepcionalidade do parágrafo único do mesmo artigo: “O aceite da colaboração ficará a critério do delegado de polícia, que poderá admiti-la ou rejeitá-la a qualquer tempo.” 

Isto na prática traduz que, supridos três critérios, será possível a utilização das informações obtidas pelo detetive particular no decorrer da investigação criminal, quais sejam, a existência de investigação criminal em curso, a autorização do contratante e a admissão da colaboração pelo delegado de polícia. 

Percebe-se, portanto, que a atuação autônoma do detetive para fins de investigação criminal parece, se não impossível, bastante limitada, uma vez que está condicionada a diversos elementos, entretanto, afigura-se como plenamente possível a sua colaboração caso existam estes três critérios de maneira simultânea. 

Assim sendo, o que confere a possibilidade, ou melhor, a legitimidade de atuação do detetive particular para fins de investigação criminal é o respaldo oriundo do contratante e a cedência por parte da autoridade policial para que o detetive exerça prerrogativa que, a priori, lhe era exclusiva. 

Disso extrai-se, ainda, a ideia de que a LGPD pode vir a não se aplicar aos detetives particulares quando tais critérios forem preenchidos, uma vez que ele estará plenamente apto a atuar em investigações criminais, Sherlock então teria se livrado das amarras da LGPD. 

Todo este cenário pode vir a mudar ou a ser desvirtuado em função de casos concretos que envolvam tal problemática, entretanto, também é cabível salientar que, dado o fato de que a LGPD é uma lei relativamente nova, ainda há muitos de seus textos que não foram plenamente regulamentados, um deles é justamente este do inciso III, do art. 4° da LGPD, uma vez que a norma prevê que ele será regido por lei específica, entretanto, esta ainda não foi editada. 

Saindo do contexto de não aplicação e flertando com o cenário oposto, a LGPD prevê a possibilidade de tratamento de dados em situações mais inusitadas e que não devem ser reguladas tão cedo pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD, a exemplo do que se observa no artigo 7º, VII, que fala do tratamento para proteção da incolumidade física de terceiro. É válido apontar que, a princípio, o dispositivo autoriza que qualquer um trate dado, por exemplo, para evitar potencial violação à incolumidade e integridade de terceiros, e que o direito penal hoje não restringe isso à proteção “corporal” da potencial vítima.  

Ou seja, seria possível em tese tratar dados, com respaldo no artigo 7º, VIII da LGPD, para auxiliar uma investigação particular se ficasse caracterizada a necessidade e adequação do tratamento em um contexto de risco à incolumidade psíquica ou emocional de alguém beneficiado pela investigação. 

Outro ponto interessante, supondo que a investigação se proponha a instruir um processo judicial ou extrajudicial, é que o artigo 7º, VI da LGPD não limita “quem” poderá tratar o dado pessoal alheio para exercício regular de direito em processo judicial. Deste modo, se cria, em tese, a possibilidade de provocar o Encarregado para colaborar com investigação particular que pressuponha tratamento de dados de terceiros, sob custódia de um outro terceiro, desde que o tratamento seja razoável, isto é, os dados necessários e adequados ao fim proposto pelo requerente. 

Diante disso, para todos os fins, é plenamente possível afirmar que, a princípio, investigações criminais podem ser realizadas por detetives particulares e que estes não estão sujeitos às regras da LGPD caso sejam preenchidos os critérios anteriormente descritos, atuando, do mesmo modo, que a autoridade policial. Bem como que, em estando, a lei pode não prejudicar, mas eventualmente auxiliar em suas investigações. 

Elementar, meu caro, Wátson. 

Sherlock Holmes e a LGPD – A atuação de detetive particular em face do art. 4° da Lei Geral de Proteção de Dados